Obsessão PacÍfica
08 - Obsessão PACÍFICA
Quando reencontrei o meu amigo Custódio Saquarema na Vida Espiritual, depois da efusão
afetiva de companheiros separados desde muito, a conversa se dirigiu naturalmente para
comentários em torno da nova situação.
Sabia Custódio pertencente a família espírita e, decerto, nessa condição, teria ele retirado e
o máximo de vantagens da existência que vinha de largar. Pensando nisso, arrisquei uma
pergunta, na expectativa de sabê-lo com excelente bagagem para o ingresso em estâncias
superiores. Saquarema, contudo, sorriu, de modo vago, e informou com a fina autocrítica que
eu lhe conhecia no mundo:
- Ora, meu caro, você não avalia o que seja uma obsessão disfarçada, sem qualquer mostra
exterior. A Terra me devolveu para cá, na velha base do “ganhou mas não leva”. Ajuntei
muita consideração e muito dinheiro; no entanto, retorno muito mais pobre do que quando
parti, no rumo da reencarnação...
Percebendo que não me disponha a interrompê-lo, continuou:
- Você não ignora que renasci num lar espírita, mas, como sucede à maioria dos
reencarnados, trazia comigo, jungidos ao meu clima psíquico, alguns sócios de vícios e
extravagâncias do passado, que, sem o veículo de carne, se valiam de mim para se
vincularem às sensações do plano terrestre, qual se eu fora uma vaca, habilitada a cooperar
na alimentação e condução de pequena família... Creia que, de minha parte, havia retomado
a charrua física, levando excelente programa de trabalho que, se atendido, me asseguraria
precioso avanço para as vanguardas da luz. Entretanto, meus vampirizadores, ardilosos e
inteligentes, agiam à socapa, sem que eu, nem de leve, lhes pressentisse a influência... E
sabe como?
- ?...
- Através de simples considerações íntimas – prosseguiu Saquarema, desapontado. – Tão
logo me vi saído da adolescência, com boa dose de raciocínios lógicos na cabeça, os
instrutores amigos me exortaram, por meus pais, a cultivar o reino do espírito, referindo-se a
estudo, abnegação, aprimoramento, mas, dentro de mim, as vozes de meus acompanhantes
surgiam da mente, como fios d’água fluindo de minadouro, propiciando-me da falsa idéia de
que eu falava comigo mesmo; “Coisas da alma, Custódio? Nada disso. A sua hora é de
juventude, alegria, sol... Deixe a filosofia para depois...” Decorrido algum tempo, bacharelei-
me. As advertências do lar se fizeram mais altas, conclamando-me ao dever; entretanto, os
meus seguidores, até então invisíveis para mim, revidavam também com a zombaria
inarticulada: “Agora? Não é ocasião oportuna. De que maneira harmonizar a carreira iniciante
com assuntos de religião? Custódio, Custódio!... Observe o critério das maiorias, não se faça
de louco!...” Casei-me e, logo após, os chamados à espiritualização recrudesceram, em torno de mim. Meus solertes exploradores, porém, comentaram, vivazes: “Não ceda. Custódio! E
as responsabilidades de família? É preciso trabalhar, ganhar dinheiro, obter posição, zelar
por mulher e filhos...” A morte subtraiu-me os pais e eu, advogado e financista, já na idade
madura, ainda ouvia os Bons Espíritos, por intermédio de companheiros dedicados,
requisitando-me à elevação moral pela execução dos compromissos assumidos; todavia, na
casa interna se empoleiravam os argumentos de meus obsessores inflexíveis: “Custódio,
você tem mais que fazeres... vida social... Você não está preparado para seara de fé...” Em
seguida, meu amigo, chegaram a velhice e a doença, essas duas enfermeiras da alma, que
vivem de mãos dadas na Terra. Passei a sofrer e desencantar-me. Alguns raros visitantes de
minha senectude, transmitindo-me os derradeiros convites da Espiritualidade Maior, insistiam
comigo, esperando que eu me consagrasse às coisas sagradas da alma; no entanto, dessa
vez, os gritos de meus antigos vampirizadores se altearam, mais irônicos, assoprando-me
sarcasmo, qual se fora eu mesmo a ridicularizar-me: “Você, velho Custódio?! Que vai fazer
você com Espiritismo? É tarde demais... Profissão de fé, mensagens de outro mundo... Que
se dirá de você, meu velho? Seus melhores amigos falarão em loucura, senilidade... Não
tenha dúvida... Seus próprios filhos interditarão você, como sendo um doente mental, inapto
à regência de qualquer interesse econômico... Você não está mais no tempo disso...”
Saquarema endereçou-me significativo olhar e rematou:
- Os meus perseguidores não me seviciaram o corpo, nem me conturbaram a mente.
Acalentaram apenas o meu comodismo e, com isso, me impediram qualquer passo
renovador. Volto da Terra, meu caro, imitando o lavrador endividado e de mãos vazias que
regressa de um campo fértil, onde poderia ter amealhado inimagináveis tesouros... Sei que
você ainda escreve para os homens, nossos irmãos. Conte-lhes minha pobre experiência,
refira-se, junto deles, à obsessão pacífica, perigosa, mascarada... Diga-lhes alguma coisa
acerca do valor do tempo, da grandeza potencial de qualquer tempo na romagem humana!...
Abracei Saquarema, de esperança voltada para tempos novos, prometendo atender-lhe a
solicitação. E aqui lhe transcrevo o ensinamento pessoal, que poderá servir a muita gente,
embora guarde a certeza de que, se eu andasse agora reencarnado na Terra e recebesse de
alguém semelhante lição, talvez estivesse muito pouco inclinado a aproveitá-la.
FRANCISCO CANDIDO XAVIER
CARTAS E
CRÔNICAS
( Ditadas pelo Espírito Irmão X)