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Bom Ânimo/ Chico Xavier

BOM ÂNIMO
O apóstolo Bartolomeu foi um dos mais dedicados discípulos do Cristo, desde os
primeiros tempos de suas pregações, junto ao Tiberíades. Todas as suas
possibilidades eram empregadas em acompanhar o Mestre, na sua tarefa divina.
Entretanto, Bartolomeu era triste e, vezes inúmeras, o Senhor o surpreendia em
meditações profundas e dolorosas.
Foi, talvez, por isso que, uma noite, enquanto Simão Pedro e sua família se
entregavam a inadiáveis afazeres domésticos, Jesus aproveitou alguns instantes
para lhe falar mais demoradamente ao coração.
Após uma interrogativa afetuosa e fraternal, Bartolomeu deixou falasse o seu
espírito sensível.
Mestre exclamou, timidamente —, não saberia nunca explicar-vos o porquê de
minhas tristezas amargurosas. Só sei dizer que o vosso Evangelho me enche de
esperanças para o reino de luz que nos espera os corações, além, nas alturas...
Quando esclarecestes que o vosso reino não é deste mundo, experimentei uma
nova coragem para atravessar as misérias do caminho da Terra, pois, aqui, o selo
do mal parece obscurecer as coisas mais
puras!... Por toda parte, é a vitória do crime, o jogo das ambições, a colheita dos
desenganos!...
A voz do apóstolo se tornara quase abafada pelas lágrimas. Todavia, Jesus fitou-o
brandamente e lhe falou, com serenidade:
A nossa doutrina, entretanto, é a do Evangelho ou da Boa Nova e já viste,
Bartolomeu, uma boa notícia não produzir alegria? Fazes bem, conservando a tua
esperança em face dos novos ensinamentos; mas, não quero senão acender o
bom ânimo no espírito dos meus discípulos. Se já tive ocasião de ensinar que o
meu reino ainda não é deste mundo, isso não quer dizer que eu desdenhe o
trabalho de estendê-lo, um dia, aos corações que mourejam na Terra. Achas,
então, que eu teria vindo a este mundo, sem essa certeza confortadora? O
Evangelho terá de florescer, primeiramente, na alma das criaturas, antes de
frutificar para o espírito dos povos. Mas, venho de meu Pai, cheio de fortaleza e
confiança, e a minha mensagem há de proporcionar grande júbilo a quantos a
receberem de coração.
Depois de uma pausa, em que o discípulo o contemplava silencioso, o Mestre
continuou:
A vida terrestre é uma estrada pedregosa, que conduz aos braços amorosos de
Deus. O trabalho é a marcha. A luta comum é a caminhada de cada dia. Os
instantes deliciosos da manhã e as horas noturnas de serenidade são os pontos
de repouso; mas, ouve-me bem: Na atividade ou no descanso físico, a
oportunidade de uma hora, de uma leve ação, de uma palavra humilde, é o convite
de Nosso Pai para que semeemos as suas bênçãos sacrossantas. Em geral, os
homens abusam desse ensejo precioso para anteporem a sua vontade imperfeita
aos desígnios superiores, perturbando a própria marcha. Daí resultam as mais
ásperas jornadas obrigatórias para retificação das faltas cometidas e muitas vezes
infrutíferos
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labores. Em vista destas razões observamos que os viajores da Terra estão
sempre desalentados. Na obcecação de sua vontade própria, ferem a fronte nas
pedras da estrada, cerram os ouvidos à realidade espiritual, vendam os olhos com
a sombra da rebeldia e passam em lágrimas, em desesperadas imprecações e
amargurados gemidos, sem enxergarem a fonte cristalina, a estrela caridosa do
céu, o perfume da flor, a palavra de um amigo, a claridade das experiências que
Deus espalhou, para a sua jornada, em todos os aspectos do caminho.
Houve um pequeno intervalo nas considerações afetuosas, depois do que, sem
mesmo perceber inteiramente o alcance de suas palavras, Bartolomeu interrogou:
Mestre, os vossos esclarecimentos dissipam os meus pesares; mas o Evangelho
exige de nós a fortaleza permanente?
A verdade não exige: transforma, O Evangelho não poderia reclamar estados
especiais de seus discípulos; porém, é preciso considerar que a alegria, a
coragem e a esperança devem ser traços constantes de suas atividades em cada
dia. Por que nos firmarmos no pesadelo de uma hora, se conhecemos a realidade
gloriosa da eternidade com o Nosso Pai?
E quando os negócios do mundo nos são adversos? E quando tudo parece em
luta contra nós? perguntou o pescador, de olhar inquieto.
Jesus, todavia, como se percebesse, inteiramente, a finalidade de suas perguntas,
esclareceu com bondade:
Qual o melhor negócio do mundo, Bartolomeu? Será a aventura que se efetua a
peso de ouro, muita vez amordaçando-se o coração e a consciência, para
aumentar as preocupações da vida material, ou a iluminação definitiva da alma
para Deus, que se realiza tão-só pela boa-vontade do homem, que deseje
marchar para o seu amor, por entre as urzes do caminho? Não será a adversidade
nos negócios do mundo um convite amigo para a criatura semear com mais amor,
um apelo indireto que a arranque às ilusões da Terra para as verdades do reino de
Deus?
Bartolomeu guardou aquela resposta no coração, não, todavia, sem experimentar
certa estranheza. E logo, lembrando-se de que sua genitora partira, havia pouco
tempo, para a sombra do túmulo, interpelou ainda, ansioso:
Mestre: não será justificável a tristeza quando perdemos um ente amado?
Mas, quem estará perdido, se Deus é o Pai de todos nós?... Se os que estão
sepultados no lodo dos crimes hão de vislumbrar, um dia, a alvorada da redenção,
por que lamentarmos, em desespero, o amigo que partiu ao chamado do TodoPoderoso? A morte do corpo abre as portas de um mundo novo para a alma.
Ninguém fica verdadeiramente órfão sobre a Terra, como nenhum ser está
abandonado, porque tudo é de Deus e todos somos seus filhos. Eis por que todo
discípulo do Evangelho tem de ser um semeador de paz e de alegria!...
Jesus entrou em silêncio, como se houvera terminado a sua exposição judiciosa e
serena.
E, pois que a hora já ia adiantada, Bartolomeu se despediu. O olhar do Mestre
oferecia ao seu, naquela noite, uma luz mais doce e mais brilhante; suas mãos lhe
tocaram os ombros, levemente, deixando-lhe uma sensação salutar e
desconhecida.
*
Embora nascido em Caná da Galiléia, Bartolomeu residia, então, em Da!manuta,
para onde se dirigiu, meditando gravemente nas lições que havia recebido. A noite
pareceu-lhe formosa como nunca. No alto, as estrelas se lhe afiguravam as luzes
gloriosas do palácio de Deus à espera das suas criaturas, com hinos de alegria.
As águas
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do Genesaré, aos seus olhos, estavam mais plácidas e felizes. Os ventos brandos
lhe sussurravam ao entendimento cariciosas inspirações, como um correio
delicado que chegasse do céu.
Bartolomeu começou a recordar as razões de suas tristezas intraduzíveis, mas,
com surpresa, não mais as encontrou no coração. Lembrava-se de haver perdido
a afetuosa genitora; refletiu, porém, com mais amplitude, quanto aos desígnios da
Providência Divina. Deus não lhe era pai e mãe nos céus? Recordou os
contratempos da vida e ponderou que seus irmãos pelo sangue o aborreciam e
caluniavam. Entretanto, Jesus não lhe era um irmão generoso e sincero? Passou
em revista os insucessos materiais. Contudo, que eram as suas pescarias ou a
avareza dos negociantes de Betsaida e de Cafarnaum, comparados à luz do reino
de Deus, que ele trabalhava por edificar no coração?
Chegou a casa pela madrugada. Ao longe, os primeiros clarões do Sol lhe
pareciam mensageiros ao conforto celestial. O canto das aves ecoava em seu
espírito como notas harmoniosas de profunda alegria. O próprio mugido dos bois
apresentava nova tonalidade aos seus ouvidos. Sua alma estava agora clara; o
coração, aliviado e feliz.
Ao ranger os gonzos da porta, seus irmãos dirigiram-
-lhe impropérios, acusando-o de mau filho, de vagabundo e traidor da lei.
Bartolomeu, porém, recordou o Evangelho e sentiu que só ele ti.nha bastante
alegria para dar a seus irmãos. Em vez de reagir asperamente, como de outras
vezes, sorriu-lhes com a bondade das explicações amigas. Seu velho pai o
acusou, igualmente, escorraçando-o. O apóstolo, no entanto, achou natural. Seu
pai não conhecia a Jesus e ele o conhecia. Não conseguindo esclarecê-los,
guardou os bens do silêncio e achou-se na posse de uma alegria nova. Depois de
repousar alguns momentos, tomou as suas redes velhas e demandou sua
barca. Teve para todos os companheiros de serviço uma frase consoladora e
amiga. O lago como que estava mais acolhedor e mais belo; seus camaradas de
trabalho, mais delicados e acessíveis. De tarde, não questionou com os
comerciantes, enchendo-lhes, aliás, o espírito de boas palavras e de atitudes
cativantes e educativas.
Bartolomeu havia convertido todos os desalentos num cântico de alegria, ao sopro
regenerador dos ensinamentos do Cristo; todos o observaram com admiração,
exceto Jesus, que conhecia, com júbilo, a nova atitude mental de seu discípulo.
*
No sábado seguinte, o Mestre demandou as margens do lago, cercado de seus
numerosos seguidores. Ali, aglomeravam-se homens e mulheres do povo, judeus
e funcionários de Ântipas, a par de grande número de soldados romanos.
Jesus começou a pregar a Boa Nova e, a certa altura, contou, conforme a
narrativa de Mateus, que “o reino dos céus é semelhante a um tesouro que,
oculto num campo, foi achado e escondido por um homem que, movido de gozo,
vendeu tudo o que possuía e comprou aquele campo”.
Nesse instante, o olhar do Mestre pousou sobre Bartolomeu que o contemplava,
embevecido; a luz branda de seus olhos generosos penetrou fundo no íntimo do
apóstolo, pela ternura que evidenciava, e o pescador humilde compreendeu a
delicada alusão do ensinamento, experimentando a alma leve e satisfeita, depãis
de haver alijado todas as vaidades de que ainda se não desfizera, para adquirir o
tesouro divino, no campo infinito da vida.
Enviando a Jesus um olhar de amor e reconhecimento, Bartolomeu limpou uma
lágrima. Era a primeira vez que chorava de alegria. O pescador de Dalmanuta
aderira, para sempre, aos eternos júbilos do Evangelho do Reino.
BOA NOVA
Espírito: Humberto de Campos
Livro - 014 / Ano - 1942 / Editora - FEB
Chico Xavier